Pobre mulher que pensa que nasceu para um propósito maior.
Pobre homem que vive com a mulher que pensa que nasceu para um propósito maior
Pobre gato que vive aos pés da mulher que pensa que nasceu para um propósito maior.
Pobres filhos que cresceram educados a crer que nasceram para um propósito maior.
Um cano roto trouxe o dilúvio incómodo à casa da pobre mulher que pensa que nasceu para um propósito maior
e aflita, a pobre mulher chamou um canalizador porque pensa que nasceu para um propósito menor.
Por isso a mulher é pobre por pensar que ela nasceu para um propósito maior
Pneu furado na imaginação.
Esvazio.
Encosto à berma mais perto
À espera de mim
As pessoas comuns tornam-se poetas
Meu pai foi poeta porque defendeu a pátria
Sem versos ou metáforas de G-3 na mão
a Musa era minha mãe.
As pessoas explodem por dentro. Nos olhos
Há sirenes de ambulâncias e um aparato policial
Nos lábios trémulos. as conversas pairam
Como nuvens pardas de borrasca antecipada.
“Mas ele é meu filho”, gritava a pobre mulher
E não era actriz nem era Shakespeare
nem deusa ou divindade
E havia versos de Virgílio na voz
De Pentesileia, destemida, bélica e pronta
A esventrar qualquer um que a contrariasse
Nas escolhas das roupas do seu único filho
O meu pai serviu a pátria, disse
Não fala muito sobre isso
Não quer falar sobre isso
E cada dia que passa
Vai querendo não falar sobre tudo
Como posso eu querer falar de Poesia?
Não fui ao pão como todos vão nos diários.
Minha cabeça rodopiava como um pião
Lançado com punhos de oceanos
Girando sem parar, como o Paraíso Perdido
De Milton que não soube parar
E ainda escreveu outro Paraíso
Sem o merecermos.
Não fiz muita coisa. Fui boémio nas tarefas
Deixei as portas do meu cansaço escancaradas
Cheguei a sentir febre sem suor na pele
Por dentro, a queimar-me como fogo
Vil nas bibliotecas da antiga Alexandria.
Os amigos eram um horizonte,
Difícil de alcançá-los. Sonhei
Que era espião russo sentado numa esplanada
Que espiava uma modelo alemã
Gelada numa caneca de vidro.
Acordei de noite, pensava que era dia
E quando adormecia vagamente já era tarde
Para promover as ânsias do fogo
As lâminas da angústia, o ardor da razão.
Os livros dormiam nas prateleiras
Mas não esboçaram sorrisos ingénuos
E era o caos, um fim do mundo
Na minha cama. Havia nos lençóis de linho
Vestígios de pele, dum fungo qualquer
Que a minha alma foi deixando
Ou corpo, nem sei, e pensei em Shakespeare
Que desconfio que escreveu Vénus e Adónis
Numa noite. E adormeci. E não sonhei.
E não escrevi.
Um livro pousado na mesa
revólver de Hemingway
Apontado na minha direcção.
Não posso ler.
Meu Deus, não posso ler
É proibido.
Mas que vontade
Premir o gatilho.
Perguntam-me às vezes qual o meu clube
sorrio e respondo: «Clube dos Poetas Mortos».
Cabisbaixos, seguem caminho.
Mas há também Clubes dos Poetas Vivos
marcam encontros em esplanadas e cafés
são tertúlias poéticas (assisti de longe)
como longas reuniões de negócios de laços difíceis.
Declamam versos, reclamam glórias
passam poemas que vão de mão em mão
como fotografias de casamento. De súbito
um deles, com ar respeitável, olhava para mim
Viu-me escrever e pensei que talvez pensasse
Que seria possível juntar-me ao banquete de poesia.
Não, sou sozinho.
Só. E os meus poemas
São a minha roupa interior,
que não exibo.
E se te aprontas, vago leitor
de apupá-los de ridículos
mesmo que tenhas razão (e talvez tenhas razão)
grito-te aos ouvidos com pulmões de oceano
os versos escritos por eles e por mim
os versos escritos por todos os poetas
os versos escritos por todos os artistas:
“Vem aí a Morte”
Dormes, entregaste-me à noite que me parece uma
Aldeia inabitada onde memórias das pessoas
Empilhavam-se e empurravam-se vegetando
Como cadáveres expostos ao sol dos sentidos
Meu amor de olhos amazónicos, estás protegida
Não por mim, mas de mim, que estou doido
Desde o dia em que incendiei o sofá de minha avó
Numa vida fácil de cadernos pautados de azul
Dormes, invejo-te o sono, porque durmo de dia
Embatendo nos bons dias dos desconhecidos
Morrendo nos elevadores, os elevadores vazios
Quero acordar-te para falarmos de ti
E ver teu sorriso perfeito de algodão doce
Cama de infância onde rapidamente adormecia